Para as tribos do Budismo e das Artes Marciais

  • by

por Gerson Ryubun Egas Severo

 

 

Esta imagem tem o significado de uma oração p’ra mim desde muito, muito tempo antes de encontrá-la, há uns anos – ainda que eu não saiba nada a respeito de suas condições de produção. No episódio piloto da série de televisão “Kung Fu” (1972-1975), “O signo do dragão”, o noviço Kwai Chang Caine é incumbido da tarefa de varrer as folhas dos pátios do mítico Templo Shaolin por um tempo que lhe parece insuportavelmente longo. Vemos as estações do ano se sucederem e ele lá, varrendo. O abade do templo, Mestre Khan, de vez em quando vai vê-lo, e pergunta: “Há quanto tempo você está aqui, fazendo isso?” Dando vasão à sua inquietação e perturbação acumuladas, o menino responde impacientemente: “Muito, muito tempo”. O mestre aquiesce. E a vida continua, até que ele se “esquece” de si mesmo [Mestre Dogen: “Aprender o caminho do Buda é esquecer-se de si mesmo…”.], de seu curto passado, de sua ansiedade em tornar-se estudante, receber as vestes correspondentes e aprender Kung Fu e a Doutrina Ch’an, o amálgama de Taoísmo e Budismo característico do Templo Shaolin (Ch’an = mais tarde, Zen), se esquece de suas expectativas, das recompensas que viriam no futuro, e torna-se um com a vassoura, com sua tigela de arroz, com as folhas do chão, com as árvores, com os céus acima, com a neve, com os insetos do verão. Ele agora reside no presente, e um dia a pergunta costumeira de Mestre Khan nem faz mais sentido: “Há quanto tempo você está aqui?” Ele dá de ombros: “Há não muito tempo, mestre. Há não muito tempo…”. E então as portas do templo se abrem para ele, que se havia feito estudante ele mesmo – e ele já não sabe se foram as portas que se abriram ou se foi ele quem as abriu. E, paradoxalmente, o aprendizado a ser feito está todo à sua frente e ele já aprendeu o essencial que havia para ser aprendido – que brotou do silêncio do pátio, do silenciamento de sua mente. Em um nível simbólico, sua compreensão de que não estava ali há muito tempo CONSTRÓI o templo, o templo para ele, um templo (sem tempo) interior.

 

Quando li “Mente Zen, mente de principiante”, de Shunryu Suzuki, lembrei de tudo isso. Minha crescente ligação com o Budismo (ligação intelectual da vida inteira, ligação vital de uns anos para cá) fez com que eu substituísse em sala de aula, quase sem notar, a expressão “coração de estudante” (Fernando Brandt/ Milton Nascimento), que eu usava muito, pela imagem do mongezinho que varre o pátio do templo. De quando em vez, ele ouve fragmentos de mantras entoados, ou trechos de sutras sussurrados do outro lado daquelas portas pesadas – daquele lugar inacessível onde estão todas as pessoas importantes, os iniciados e os doutos. E ele incorpora aqueles lampejos à sua experiência de mongezinho varredor – e o seu varrer é profunda meditação, profundíssimo (des)aprender. Ele está reconhecendo os fundamentos, cultivando os fundamentos, sendo ele próprio os fundamentos. As portas nunca estiveram de fato fechadas – e o templo, afinal, só é templo se não houver um dentro e um fora. Suas paredes nunca estiveram ali. E o cuidado com a vassoura e com o pátio era também o cuidado de si, o cuidado dos outros, o cuidado do mundo (quase “As três ecologias”, de Félix Guatarri, em uma perspectiva [cósmica?] da ética do cuidado).

 

Sejamos o mongezinho que varre as folhas caídas no outono do pátio do templo. Cultivemos os primeiros passos, a mente de principiante, esse lugar anterior ainda àquele em que bate o coração de estudante. Quando os figurões de qualquer lugar (os “que sabem demais/ Que juram que pensam”) passarem com o nariz empinado, incline a cabeça, humilde como o pó. Aprenda a sentar-se. “Quando terminar de varrer, guarde a vassoura.” E, principalmente, “apenas não saiba”…

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *